GRAMSCI REFUTADO
Entrevista com Nildo Viana
Edições Enfrentamento
Nildo Viana, autor de Introdução à Crítica da Ideologia Gramsciana (Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020) e professor da Universidade Federal de Goiás, nos concedeu uma entrevista sobre o seu livro em que aborda o pensamento de Gramsci, sua relação com o marxismo e seus limites.
Edições Enfrentamento: O seu livro aborda o pensamento de Gramsci, autor renomado e reconhecido por milhares de intelectuais de diversas gerações como sendo marxista e grande intelectual. O seu livro, no entanto, propõe realizar uma crítica da “ideologia gramsciana”. Isso não seria muita pretensão?
Nildo Viana: A palavra pretensão pode ser entendida num sentido positivo ou num sentido negativo. No sentido positivo, pretensão é uma aspiração, algo que se almeja. No sentido negativo, pejorativo, significa o desejo de realizar ou ter realizado algo exagerado ou demasiadamente ambicioso. Eu diria que o meu livro sobre Gramsci é pretensão no primeiro sentido, pois é apenas uma introdução a uma crítica que deve ser mais desenvolvida e aprofundada no futuro. Mas a pergunta aponta para o sentido negativo da palavra. Nesse caso, a resposta é: não, não é pretensão. E a pergunta recorda o próprio Gramsci, que diz que a verdade é o que é consensual (algo, aliás, totalmente não-marxista). O consenso nunca foi bom conselheiro, especialmente numa sociedade onde reina o dinheiro, as ideologias e as ilusões em geral. Como eu já disse em resposta a uma pseudocrítica no passado, um cego não enxerga o arco-íris e de nada adianta reunir 300 cegos, pois eles continuarão não enxergando o arco-íris. Obviamente, que isso não é uma ofensa às pessoas com deficiência visual, mas apenas a constatação de um fato que vale como metáfora para a não percepção de determinadas coisas que nos cercam e isso pode ser individual ou coletivo. Já houve épocas em que se acreditava nas coisas mais absurdas e os indivíduos considerados mais “inteligentes” era os seus propagadores e isso continua até hoje. Por conseguinte, a crítica do pensamento de Gramsci é algo que qualquer um pode fazer, desde que tenha leitura, compreensão do autor e argumentos para tal. E a crítica também pode ser criticada, mas aí os críticos também devem ter leitura e argumentos para realizar a crítica, ao invés de ficar na pseudocrítica (tal como ao invés de mostrar os problemas do texto, suas contradições ou qualquer outro elemento que possa ser criticado, usar adjetivos pejorativos, entre diversas outras formas), seguindo os mesmos critérios. As interpretações de Gramsci não são neutras, são perpassadas por interesses, valores, sentimentos e são esses elementos que explicam o fato de milhares de intelectuais que se dizem marxistas não terem explicitado a contradição entre o pensamento desse autor e o de Marx e do marxismo autêntico (o que expressa a perspectiva do proletariado). Quando postei algumas notas críticas sobre Gramsci no meu blog na internet, diversos gramscistas começaram a fazer comentários ofensivos e pseudocríticas (o máximo que conseguiam balbuciar era “não leu Gramsci”) e por isso tive que passar a moderar os comentários. Ora, se alguém critica um autor que eu concordo e defendo, por maior que seja a irritação (e a provocação), a crítica deve ser fundamentada, deve dizer onde há erro interpretativo, quais argumentos são equivocados, etc. A crítica pressupõe a compreensão. Alguns querem criticar sem compreender, tal como uma aluna uma vez que me entregou um trabalho querendo criticar Marx, dizendo que tem indivíduos que são professores de escolas privadas e também trabalham em escolas públicas, além de criar galinhas no seu quintal, e por isso a concepção de classes sociais de Marx seria equivocada, pois eles seriam funcionários públicos, profissionais liberais e burgueses (por criar galinhas no quintal... o que não deixa de ser cômico). Obviamente que essa pessoa não entende absolutamente nada do conceito de classes sociais de Marx (e nem imagina que “funcionários públicos” e “profissionais liberais” não são classes sociais e nem fazem parte do campo lexical marxista). Esse é o caso de uma pessoa pretensiosa. E esse não é o meu caso. Por exemplo, eu não afirmo que Gramsci é monarquista por defender a ideia do partido como “moderno príncipe” e, obviamente, não falo nada sobre “criar galinhas no quintal”. Os caçadores de galinhas no quintal são pretensiosos quando querem fazer críticas do que desconhecem, assim como aqueles que só dão conta de dizer que eu não li Gramsci (basta folhear o livro e ver as citações textuais para saber que isso é destituído de sentido), pois não basta afirmar, é preciso fundamentar. Por exemplo, nesse caso, mostrar que as citações estão erradas ou são falsas. Não é isso efetivamente o que ocorre. O debate intelectual no Brasil e no mundo se empobreceu proporcionalmente com o avanço da ignorância generalizada, um subproduto do desenvolvimento capitalista. Os grandes debates do final do século 19 e de parte do século 20 foram substituídos pela pseudocrítica ou pela fuga do debate, ou por debates estéreis sobre vírgulas e erros formais.
Um cego não enxerga o arco-íris e de nada adianta reunir 300 cegos, pois eles continuarão não enxergando o arco-íris.
Edições Enfrentamento: Qual é a sua base para apresentar uma interpretação diferente da quase generalidade dos autores que interpretaram Gramsci?
Nildo Viana: As interpretações são produtos sociais e históricos e se alteram dependendo de diversas determinações (quem é o intérprete – com seus valores, interesses, formação intelectual – as ideias dominantes da época, o paradigma hegemônico, as interpretações já existentes, etc.). A maior partes das interpretações reproduzem as interpretações canônicas. E a quase totalidade dos indivíduos que leem ou dizem ler Gramsci reproduzem a interpretação canônica da obra dele (e é isso que torna possível alguns leitores pensarem que eu não li Gramsci... pois é uma interpretação “impensável”). Isso ocorre também com Marx, Weber, Durkheim e todos os demais pensadores. Porém, as interpretações canônicas são, em grande parte dos casos, equivocadas. A base de minha interpretação diferenciada e crítica em relação ao pensamento de Gramsci é o marxismo, o que traz em si o método dialético, o materialismo histórico, a teoria do capitalismo, além de outros aspectos relacionados e derivados da episteme marxista (o seu campo axiomático, ou seja, determinados valores vinculados ao interesse da libertação humana). E é por isso que no primeiro capítulo realizo uma comparação entre as ideias de Marx e Gramsci, pois, apesar de ser uma obviedade para quem conhece de forma mais profunda esses dois pensadores, é necessário compará-las para demonstrar que elas são antagônicas. E alguns aspectos da minha crítica não são novos. Tal como é o caso das críticas que o italiano Rodolfo Mondolfo realizou a Gramsci. Obviamente que a história das ideias é a história dos vencedores (mesmo que sejam vencedores apenas em algum setor da sociedade, região cultural, etc. e, no caso, são os vencedores nos meios políticos progressistas) e assim a crítica de Mondolfo a Gramsci é pouco conhecida, mas a crítica de Gramsci a Mondolfo é mais conhecida e até razão para esse importante pensador, muito mais profundo do que o famoso escritor italiano, ter caído no esquecimento. Essa base permite um aprofundamento na análise do pensamento gramsciano e, desta forma, observar não apenas os seus equívocos, como também seu afastamento do marxismo.
Edições Enfrentamento: Não existe nada no pensamento de Gramsci que seja aproveitável?
Nildo Viana: Esse questionamento é um equívoco comum. Quando se critica um autor geralmente se pensa que isso significa que nada do que ele afirmou seria válido e aí logo vem o “mas” de quem não entende o processo crítico e seu significado e formas de manifestação. Sem dúvida, não é impossível que algum autor seja completamente nulo em determinada produção intelectual, mas é algo muito raro e geralmente nos casos de uma produção sem qualquer originalidade. Vários ideólogos trazem um ou outro elemento que tem alguma utilidade e isso até mesmo nos pensadores conservadores. Durkheim, por exemplo, traz elementos que ajudam a compreender o processo educacional. Assim como alguns conservantistas contemporâneos acertam em certas críticas aos progressistas e, portanto, revelam um pouco da realidade. Até mesmo Adolf Hitler tem algo de “aproveitável” no seu livro Minha Luta. Ele faz reflexões que são elementos básicos do nazismo, como, por exemplo, a criação de um inimigo imaginário. As suas ideias são falsas e equivocadas, mas explicitam elementos do pensamento nazista e, nesse sentido, oferece algo aproveitável, que serve para entender o nazismo. Assim, como coloquei no meu livro Cérebro e Ideologia, toda concepção ideológica é um sistema de pensamento ilusório, tal como já colocava Marx, mas isso não quer dizer que são meras fantasias, pois elas remetem ao real, invertendo-o, e ao fazer isso, traz alguns elementos sobre essa mesma realidade. Sem dúvida, Gramsci tem muito mais elementos aproveitáveis do que estes outros. Porém, o foco do meu livro é a crítica ao gramscismo e, nesse sentido, não dediquei uma parte para apresentar o que existe de aproveitável no seu pensamento. Existem, por exemplo, algumas afirmações específicas que ele realiza que tem utilidade para compreender certos aspectos da cultura na sociedade capitalista ou para entender o funcionamento do próprio pensamento gramsciano. Em síntese, existem alguns elementos aproveitáveis no pensamento de Gramsci e, talvez, após aprofundar a crítica ao seu pensamento, eu mesmo busque mostrar quais são esses elementos. A crítica ao pensamento de Gramsci significa, como toda crítica às ideologias, que em sua essência e totalidade (que, aqui, não significa “tudo” e sim no conjunto) é um pensamento ilusório, mas podendo ter momentos de verdade e estes são “aproveitáveis”.
O próprio Gramsci afirmou que a partir de um pequeno pedaço de osso é possível construir um “monstro fabuloso” e, sem dúvida, foi isso que os gramscistas fizeram.
Edições Enfrentamento: A sua interpretação difere da quase totalidade dos intérpretes de Gramsci. Isso significa, evidentemente, uma discordância com os chamados “gramscianos”. A crítica de Gramsci pressupõe uma crítica aos gramscianos?
Nildo Viana: Sem dúvida, a crítica a Gramsci significa uma crítica aos gramscistas e talvez isso seja o motivo da irritação de alguns. E isso se revela tanto na interpretação diferente (e ao se apresentar uma interpretação diferente, isso significa que há discordância com as demais interpretações que, mesmo sem ser explicitado, funciona como crítica) quanto na crítica explícita, que aparece em alguns momentos. Para entender Gramsci é necessário compreender o limite interpretativo dos gramscistas. E as interpretações dos gramscistas tem dois aspectos que merecem uma crítica mais aprofundada. O primeiro é o vínculo de Gramsci com Marx. Gramsci se afirma “marxista”, mas suas concepções entram em contradição com o marxismo e os gramscistas deveriam ter explicitado isso, mas não só não o fizeram como reforçaram. O segundo é a construção de toda uma coerência e articulação de um edifício ideológico que no pensamento de Gramsci não está tão estabelecido e desenvolvido, gerando, em alguns casos, em interpretações que são mais assimilação não-declarada do que interpretação propriamente dita. Isso é uma fábula. Aliás, o próprio Gramsci afirmou que a partir de um pequeno pedaço de osso é possível construir um “monstro fabuloso” e, sem dúvida, foi isso que os gramscistas fizeram. Contudo, não é possível criar uma homogeneização entre os diversos intérpretes de Gramsci, pois existem diferenças entre eles. Há, por exemplo, aqueles que são mais próximos de uma posição mais radical – como o historiador Mário Maestri – e por isso retomam os escritos do jovem Gramsci sobre os conselhos de fábrica, no bojo da Revolução Italiana, quando ele assumiu uma posição mais avançada, e assim fazem uma interpretação distinta da maioria. Há aqueles puramente reformistas e que tentam usar Gramsci como justificativa e legitimação para o reformismo, como foi o caso do cientista político Carlos Nelson Coutinho. Embora eu considere a primeira posição superior politicamente falando, penso que a segunda interpretação é a mais adequada, inclusive por Gramsci ter abandonado a discussão sobre conselhos e outros elementos e sua preocupação com a derrota dos partidos progressistas e a vitória do fascismo, o que significou uma mudança de concepção. Em síntese, uma crítica a Gramsci pressupõe e, indiretamente (se não for explicitamente) é, uma crítica aos gramcistas.
Edições Enfrentamento: Existem outros intérpretes que coincidem com a sua interpretação e análise crítica de Gramsci?
Nildo Viana: Não na totalidade. Na verdade, são poucos os autores que efetivaram uma crítica a Gramsci. Mas existem elementos que estão em alguns dos seus críticos. Nesse caso, poderíamos citar Perry Anderson, no seu livro As Antinomias de Gramsci, cuja crítica é extremamente fraca, mas aproxima Gramsci do reformismo. Mas há elementos coincidentes com a crítica de Rodolfo Mondolfo, que o relaciona como o leninismo, bem como Fernando Coutinho Garcia, em seu artigo que compara a concepção leninista e a gramcista. Também J. Lacasta traz um elemento que desenvolvemos, que é o idealismo em Gramsci. Nesse autor, no entanto, há uma tentativa de resgatar Gramsci, apesar da crítica. Existem outros autores, especialmente italianos, que fazem críticas a Gramsci, mas não tivemos acesso às suas obras.
O reformismo ambíguo presente no pensamento de Gramsci facilita a sua assimilação por social-democratas e pseudobolchevistas, tal como os ideólogos do PCI – Partido Comunista Italiano e o chamado “eurocomunismo”.
Edições Enfrentamento: Em sua opinião, o que explica o sucesso do pensamento de Gramsci?
Nildo Viana: Eu colocaria duas razões fundamentais. A primeira seria o caráter fragmentário e incompleto de suas concepções de maturidade, o que possibilita de forma mais fácil a assimilação do seu pensamento. Assim, Gramsci emerge para justificar e legitimar posições reformistas, fundamentalmente, bem como ações pontuais, práticas específicas. Da mesma forma, é possível assimilá-lo sob outras formas, querendo ver em sua obra uma posição revolucionária – e quase todos que fazem isso precisam apelar para os escritos do jovem Gramsci sobre os conselhos de fábrica, momento em que a radicalização do movimento operário promoveu uma radicalização do seu pensamento. A segunda é o reformismo ambíguo presente no seu pensamento, o que facilita a sua assimilação por social-democratas e pseudobolchevistas, tal como os ideólogos do PCI – Partido Comunista Italiano e o chamado “eurocomunismo”. A sua separação de estratégia política no Oriente, no qual Lênin estaria certo com a “guerra de movimento”, e no ocidente, no qual a estratégia bolchevista deveria ser substituída pela “guerra de posição”, permite alguém se dizer “revolucionário” mesmo sendo reformista. E ser reformista apelando para Gramsci, considerado marxista e “revolucionário”, é uma boa fonte de legitimação. E ainda há o adendo de que ele é mais “democrático” do que, por exemplo, Lênin e sucessores imediatos (Trotsky e Stálin). Gramsci não é um “comunista” qualquer, é um “bom comunista”, mais democrático e aceitável para a democracia burguesa.
Edições Enfrentamento: Existe algo que precisa ser aprofundado na análise do pensamento de Gramsci?
Nildo Viana: Sim, existem vários elementos que precisam de aprofundamento. Muitos destes
elementos já foram explorados, mas de forma inadequada e por isso precisariam ser revisitados. Por outro lado, as raízes do pensamento gramsciano precisam ser melhor exploradas, inclusive seu vínculo com o idealismo de Benedetto Croce, o que Lacasta fez, mas que precisaria aprofundamento, bem como com outros ideólogos, inclusive Comte e Durkheim, por mais incrível que pareça, pois existem algumas semelhanças que precisariam ser melhor desenvolvidas e uma comparação mais profunda para explicitar isso de forma mais adequada.
Edições Enfrentamento: Quando irá sair sua obra mais desenvolvida sobre Gramsci, intitulada “Esquecer Gramsci”?
Nildo Viana: Eu tenho diversos outros projetos intelectuais mais extensos e profundos que vou priorizar. Assim, estou preparando uma obra sobre a teoria do capitalismo subordinado e tenho alguns elementos para desenvolver outras duas, uma sobre dialética marxista e outra sobre análise do discurso. Tendo em vista estes e outros projetos, penso que ainda demorará muito para sair esta nova obra e por isso essa introdução foi publicada, pois lança as sementes que germinarão na futura produção, mas já realiza a crítica inicial que será posteriormente desenvolvida. Penso que isso poderá demorar alguns anos.
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